Brasileiro deportado com a filha dos EUA relata humilhações: 'Tem que implorar para ir ao banheiro'

Brasileiro deportado com a filha dos EUA relata humilhações: 'Tem que implorar para ir ao banheiro'

Natanael da Silva tentou entrar ilegalmente no país usando estratégia chamada de cai-cai, na qual o imigrante tenta se entregar às autoridades com uma criança para responder ao processo em liberdade

Porto Velho, RO - 
Na tarde de quarta-feira, um voo com 211 brasileiros deportados dos Estados Unidos aterrissou no Aeroporto Internacional Tancredo Neves, em Confins, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. No grupo, 90 eram crianças e adolescentes.

Entre os deportados estava o operador de máquinas Natanael da Silva, de 25 anos, e sua filha, de apenas 6. O caminho traçado na tentativa de morar nos EUA por Natanael em entrevista ao GLOBO foi feito de expectativas frustradas na ida e humilhações, agressão e descaso na volta.

Natanael é de Monte Negro, cidade de 14 mil habitantes do Oeste de Rondônia. Operador de máquinas agrícolas, tinha a expectativa de arrumar um emprego nos Estados Unidos e mandar dinheiro para o restante da família. Pai e filha deixaram o país em 21 de dezembro, saindo de São Paulo rumo ao México.

No dia 19 de janeiro, os dois se juntaram a outras famílias com crianças para atravessar a fronteira e se entregar à polícia migratória dos Estados Unidos. Os outros brasileiros eram de Minas Gerais e São Paulo. Às 20 horas daquela quarta-feira, na cidade fronteiriça de San Diego, na Califórnia, o grupo se entregou a agentes americanos.

Cai-cai

Natanael e a filha, assim como as outras famílias que desembarcaram em Belo Horizonte há dois dias, fazem parte de uma nova safra de migrantes, que tentam entrar ilegalmente nos Estados Unidos por um procedimento chamado pelos coiotes e pela Polícia Federal, de “cai-cai”. Por ele, os pais viajam ao México com a ajuda de coiotes e, ao adentrar os primeiros metros no território americano, se entregam à polícia imigratória.

A promessa dos coiotes de é que, ao se entregar, os pais e as crianças ganham autorização para permanecer livres nos Estados Unidos enquanto transcorre o processo de deportação. Dessa forma, poderiam fugir, abandonando o processo na Justiça americana e permanecendo ilegalmente.

O método foi usado por algum tempo ao longo de 2020, depois que a separação de pais e filhos de imigrantes, no governo Donald Trump, ganhou repercussão negativa internacional. Em resposta, foi baixado um decreto para que não houvesse o afastamento e o processo de libertação pudesse ser acompanhado em liberdade pelos imigrantes.

Os coiotes viram no decreto uma brecha para expandir o cai-cai. Crianças passaram a ser usadas como forma de ingresso de famílias da América Latina. Ao perceber que os coiotes se aproveitavam da brecha legal, o governo americano, agora na administração de Joe Biden, passou a adotar, mais recentemente, o envio de famílias de volta ao país de origem, sem permitir que elas permaneçam livres no país.
Bebês deportados

Muitos dos deportados atualmente são crianças que ainda nem aprenderam a andar: segundo a Polícia Federal, 100 crianças de zero a 5 anos chegaram ao Aeroporto Tancredo Neves deportadas dos EUA em 2020.

— A gente vai com essa expectativa, de 99%, de entrar com os filhos. Você chega e se entrega para um oficial de imigração. Eles te prendem por dois ou três dias, e dão até uma carta para matricular as crianças na escola. Mas mudou a regra — lamenta Natanael.

Após se entregar, o operador de máquinas foi informado de que seria mandado com seu grupo para uma base militar no Arizona. Natanael conta que, na base, as famílias ficaram detidas dentro de uma quadra de concreto, ao lado de um aeroporto militar.

— Os maridos são separados das esposas e os filhos permanecem com as mães. A quadra é dividida em várias pequenas “celas”, por plásticos transparentes, forrados com lona. No meu caso, fiquei com minha filha. É como se fosse um aeroporto. Tem uma pista de voo do lado da detenção — conta.

O tratamento dispensado pelas autoridades americanas é “pesado”, define Natanael. A luz da quadra fica acesa permanentemente. A prática é para impedir que se diferencie o dia da noite e evitar que os imigrantes possam dormir.

— Não apaga a luz para nada. Os guardas te maltratam. Fiquei seis dias preso, mas ainda consegui tomar dois banhos por causa da menina (a filha). Mas as pessoas passam dez dias sem tomar banho — relata.

Segundo o operador de máquinas, muitos brasileiros continuarão na base militar do Arizona:

— Muitos estão testando positivo para Covid-19. Mas entre os brasileiros, ninguém acredita nesses testes. Acham que isso é para prorrogar o tempo de prisão.

O avião que trouxe as famílias foi fretado pelo governo americano. Até a viagem, entre 10 e 12 agentes federais vigiavam os migrantes. Pais e mães foram algemados nas pernas e nas mãos, e uma corrente prendia as algemas da parte superior ao uniforme, na altura da barriga. Depois de mais de 10 horas voando nessas condições, as algemas foram retiradas meia hora antes do pouso.

— O voo foi somente de famílias. Não veio nenhuma pessoa que não estava acompanhada por crianças. Presenciei alguns pais sendo agredidos, mesmo algemados dos pés à cabeça. Para todas as crianças, é um trauma muito grande.

Elas veem os pais sendo algemados e acham que vão ser separadas deles. Muitas gritam e choram. Vieram muitos bebês de colo. Os oficiais não têm empatia, não estão nem aí para as crianças. Tem que implorar para ir ao banheiro — reclama.

Casamentos forjados

A Polícia Federal abriu uma investigação para apurar como essas crianças saíram do Brasil e verificar as condições a que foram submetidos durante o processo de deportação dos EUA. O delegado Daniel Fantini, responsável pelo inquérito, reconhece que está em curso um novo “fenômeno migratório” em que até casamentos têm sido forjados para para a entrada ilegal com menores de idade.

— Ao serem detidos, são tratados como criminosos — afirma. — O menino às vezes é filho apenas de uma pessoa do (suposto) casal. O que a gente vê muito também são adultos se passando por menores de idade. A pessoa tem 18 anos e falsifica documentos para conseguir entrar como se fosse adolescente.

Fantini explica que o fluxo migratório ilegal para os Estados Unidos tem aumentado ano a ano, mas tem se impressionado com a quantidade de crianças que estão sendo deportadas:

— Esses voos estão chegando com muita gente. Dessa vez (quarta-feira), o diferente foi a quantidade de famílias com crianças. Isso é um fenômeno visível, mensurável. É muito triste. Não sei como a pessoa tem coragem de colocar o filho nessa situação. É muito arriscado chegar lá, ficar nas mãos dos coiotes. E depois serem tratados como criminosos. Ficam detidos, presos, sem contatos com parentes. É uma loucura.

Fonte: O Globo
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