Ministério Público do Rio denuncia um dos primeiros casos de violência psicológica contra a mulher

Ministério Público do Rio denuncia um dos primeiros casos de violência psicológica contra a mulher

Se condenado, agressor cumprirá pena de 6 meses a dois anos de reclusão

PORTO VELHO, RO - A engenheira Sabrina Castro*, de 46 anos, conheceu o pai dos seus dois filhos no cursinho pré-vestibular. Entrou na faculdade namorando; saiu formada e casada. Com o passar do tempo, avançava na vida profissional e regredia na amorosa. Por causa das crianças, não tinha coragem de pedir o divórcio. “Eu era uma profissional bem-sucedida, ganhava mais do que o meu marido, mas era impedida de mexer na minha conta bancária. Precisava dar satisfação sobre cada cheque que passava. E ele controlava cada centavo”, conta. O controle ia bem além do financeiro. “Ele não me deixava atravessar a rua sozinha, botou na minha cabeça que eu não conseguia.”

Sabrina demorou alguns anos para entender que era vítima de violência psicológica — que passou a ser crime em 28 de julho de 2021, quando a Lei nº 14.188 foi incluída no Código Penal. Ainda no ano passado, a engenheira resolveu levar o caso ao tribunal e, há um mês, obteve o que considera a sua primeira vitória: o Ministério Público do Rio de Janeiro denunciou o seu ex-marido. “É um dos primeiros casos de violência psicológica reconhecidos no Rio. Se condenado, o acusado cumprirá pena de seis meses a dois anos de reclusão”, diz o advogado da vítima, Alexandre Corrêa, do Escritório Carvalho Côrtes Advogados. Entre as provas apresentadas pela acusação está o laudo médico de que Sabrina foi diagnosticada com Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).

A engenheira recebeu suporte psicológico e jurídico do SER ELA, grupo de apoio a vítimas de violência doméstica criado pela advogada carioca Christine Simões, de 44 anos, em 2020. A partir de sua história pessoal, ela resolveu se debruçar sobre o tema: inscreveu-se em uma Pós-Graduação de Direitos Humanos na Universidade de Londres e em uma de Direito de Família na PUC-Rio. Hoje, é especialista no tema. Se alguém ainda tem dúvida do que se trata, Christine é direta. “De um lado é controle e dominação e de outro, impotência e submissão”, define a advogada. “As vítimas, dominadas, sentem-se impotentes. São condenadas pela sociedade por permanecerem passivas, por não lutarem. As pessoas acham que a inação é aceitação, e não é. Quem sofre violência psicológica tem medo: medo de morrer, de perder os filhos, de ficar na rua. E não é uma questão de classe social, acontece em todas”.


A advogada carioca Renata de Almeida Palmeira, de 45 anos, perdeu as contas de quantas vezes ouviu a frase: “Como assim você, uma mulher instruída, não via que estava vivendo uma situação dessa dentro de casa?” Foto: Divulgação

Mãe de três filhos, a advogada carioca Renata de Almeida Palmeira, de 45 anos, perdeu as contas de quantas vezes ouviu a frase: “Como assim você, uma mulher instruída, não via que estava vivendo uma situação dessa dentro de casa?”. “Fui criada para acreditar que o casamento é para sempre. E casei muito jovem e grávida da minha primeira filha, aos 21 anos. No início, pensava que o meu castelo havia desmoronado, mas hoje entendo que esse castelo nunca existiu. Foi uma construção da minha cabeça”, lembra.

Renata ficou casada por 15 anos, nos últimos três tentando se separar. “Há um ciclo da violência. Ele me silenciava durante três semanas e depois vinha uma semana de lua de mel, flores, jantares românticos. Assim, eu sempre acreditava que ia melhorar...”, lembra ela, separada há oito. “Não foi fácil romper esse ciclo. Fui embora de casa no impulso, com a roupa do corpo e três filhos embaixo do braço. Me tacharam de louca, pois, para quem olhava de fora, a minha família era digna de comercial de margarina. E, na rua, o meu ex-marido era aquele sujeito simpático.”

É o tipo de agressor que a promotora de Justiça Gabriela Manssur chama de “estelionatário emocional”. “Um sedutor social, que só tira a máscara dentro de casa”, completa Gabriela. Ela fala com conhecimento de causa: 87% dos casos que chegam ao seu projeto, o Justiceiras, que já atendeu 10 mil mulheres, são desse tipo de violência. “Psicólogas e assistentes sociais foram capacitadas para mensurar o dano causado à mulher e, assim, acabar com a sensação de impunidade”, diz.

A professora universitária mineira Fabiana Souza, de 39 anos, optou por não denunciar o ex-marido Foto: Arquivo pessoal

Embora acumulasse provas de danos morais e psicológicos, a professora universitária mineira Fabiana Souza, de 39 anos, optou por não denunciar o ex-marido. “Seis meses depois do divórcio, após uma ameaça, fui à delegacia registrar boletim de ocorrência para pedir medida protetiva e fui mal tratada pelo inspetor. Eu me senti muito mal. Resolvi, então, abrir mão da ação criminal também por não querer expor as minhas filhas”, justifica.

Fabiana foi casada por 17 anos. “A violência psicológica começou muito cedo, mas como ela é invisível, demorei a perceber. Por muito tempo, achei que a dominação era uma forma de cuidado”, lembra. “No final, não sabia mais quem eu era, do que gostava.” Em determinado momento, Fabiana, que sempre dirigiu bem, inclusive em rodovias, passou a ter medo de pegar no volante — se o ex estivesse no carona. “É muito sutil, mas isso mina a autoestima. Achei que estava enlouquecendo. Pensei em fugir, deixando minhas filhas. Logo eu, que sempre critiquei mulheres que abandonavam as famílias. Agora, sei o que pode levar uma mulher a tomar uma atitude como essa”, reflete. Separada há dois anos, ela está cuidando da depressão e dos transtornos alimentares com terapia. “Em 17 anos de casamento, engordei 30 quilos. Hoje entendo que meu ex-marido estimulava que eu ficasse gorda como forma de controle, para não chamar atenção de outros homens.”

A promotora Silvia Chakian, do Ministério Público de São Paulo, lembra que ainda existe uma tendência de reduzir a violência psicológica. “Muita gente acha que é uma forma de agressão menor, menos grave, mais branda. Mas, em muitos casos, deixa cicatrizes mais profundas do que a física”, compara. “Escutamos muitos relatos de mulheres que viviam em casa com a sensação constante de pisar em ovos. Esse nível de estresse emocional pode ter consequências gravíssimas.”

E a agressão psicológica ainda pode ser o antecedente da física. “Só depois que levei o primeiro empurrão entendi que aquilo era consequência de xingamentos que há anos eu tolerava”, conta a nutricionista niteroiense Stella Cristina Navega Stalleikem, de 43 anos. Entre idas e vindas, foram 12 anos. No início, o então companheiro a isolou dos amigos. “Ele dizia que eu era burra, feia, gorda, péssima nutricionista. E eu, como espírita, achava que aquilo era carma. Após ser agredida novamente deu um estalo: minha filha precisava de mim viva.” Depois de entrar em depressão profunda, Stella foi aposentada por invalidez nos dois trabalhos. “Agora, estou me reerguendo e só por isso tenho condições de dar essa entrevista, antes só chorava”, conta, emocionada. A nutricionista entrou com processo administrativo de revisão da aposentadoria. “Preciso voltar a trabalhar, preciso voltar a ser eu.”

Tudo é uma questão de tempo, inclusive envolver-se em novos relacionamentos — todas as vítimas ouvidas por ELA ainda não conseguiram superar essa barreira. O trauma da violência psicológica não é neutralizado no momento em que o casamento acaba, assim como uma experiência de assédio no trabalho não é resolvida quando se pede demissão, observa a psicanalista Sandra Niskier Flanzer. “Na maioria das vezes, as questões que levaram alguém a ter suportado mais tempo do que deveria uma determinada situação precisam ser elaboradas. E essa elaboração depende da experiência e da subjetividade de cada um”, aponta.

*A entrevistada pediu para ter o nome preservado pois o processo corre em segredo de Justiça.


Fonte: O Globo
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